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  • Foto do escritorFabrizio Caldeira

Distribuição das receitas do IBS e os riscos fiscais das regras de transição

Um dos principais motes da reforma tributária foi a alteração do local da tributação dos chamados “tributos sobre consumo”, pois o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) deve, como regra geral, incidir integralmente no local de destino, substituindo o modelo atual em que parte da tributação é realizada no local da produção, como ocorre por exemplo com a tributação do Imposto sobre Serviços (ISS) exigido dos estabelecimentos prestadores, ou com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) incidente sobre as operações interestaduais, destinado parcialmente ao estado de origem da mercadoria ou serviço.


Essa alteração do local da incidência do tributo impacta profundamente na capacidade arrecadatória dos estados e municípios, na medida que alguns entes têm um potencial de arrecadação sobre o consumo de bens e serviços menor do que têm sobre a produção de bens e serviços.


O tamanho do déficit nas receitas públicas de estados como Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e São Paulo, caso a “virada de chave” — produção para consumo — fosse realizada abruptamente, seria na ordem de 15%, como aponta estudo de Sérgio Gobetti e Priscila Monteiro, divulgado pelo Ipea [1], ante o que ninguém negaria o rompimento do pacto federativo, tamanha a supressão da capacidade financeira dos ‘entes perdedores’ e de suas respectivas autonomias.


Eis o motivo das regras de transição veiculadas pela EC nº 132/2023. Pretende-se com o período de transição suavizar o impacto financeiro ao longo de 50 anos, tempo esse que o legislador constitucional julgou suficiente para o equilíbrio dos “entes perdedores” entre suas receitas e despesas.


Gobetti e Monteiro, no mesmo trabalho, estimam que o tamanho da perda de alguns entes com as regras de transição, quando entram em conta as variáveis aumento da arrecadação e geração de riquezas, seria muito menor.


Esse rico estudo nos ajuda a dimensionar o impacto da reforma tributária sobre os “entes perdedores” e a importância das regras de transição, mas, infelizmente, não abrange todos os riscos fiscais que a EC nº 132 de 2023 carrega.


Merecem, portanto, ter lugar no debate, algumas situações que exemplificam esses riscos. Analisaremos duas delas: a arrecadação ‘irregular’ do ISS e ICMS e a geração de índices artificiais para distribuição da receita do IBS e o aumento populacional dos municípios e a diminuição da receita pública per capita.


(1) A arrecadação ‘irregular’ do ISS e ICMS e a geração de índices artificiais para distribuição da receita do IBS


O principal critério de distribuição das receitas do IBS até 2053 será um retrato da receita média de cada ente subnacional com a arrecadação do ISS ou ICMS. Até essa data, a maior parte das receitas do IBS deve ser distribuída olhando para uma fotografia da arrecadação dos entes subnacionais no sistema atual. Assim, quanto maior a arrecadação do ICMS ou ISS, maior será a participação do ente subnacional na receita do IBS.


Inclusive, a esse critério foram atribuídas diversas iniciativas de aumento das alíquotas do ICMS [2] [3], e independentemente do acerto econômico-social dessas iniciativas, elas possuem a vantagem de serem transparentes, cabendo ao legislador local decidir se pretende sacrificar o contribuinte no curto período restante à arrecadação do ICMS ou ISS para garantir uma melhor participação nas receitas do IBS.


O que não pode ser admitido pelo legislador complementar é o cômputo na receita média dos entes subnacionais, de receitas irregularmente arrecadadas a título de ISS ou ICMS, ou, simplesmente, receitas arrecadadas com base em normas consideradas, ainda que posteriormente, ilegais ou inconstitucionais.


Deve o legislador complementar regular o modo como as receitas arrecadadas atualmente a título de ISS e ICMS, sob fatos ou bases litigiosas, deverão ser suprimidas do cômputo da receita média desses tributos para fins de participação nas receitas do IBS, caso a fazenda pública seja vencida nos litígios.


Por exemplo, eventuais derrotas dos interesses fazendários nas discussões acerca da incidência do ICMS sobre a subvenção econômica da energia elétrica (Tema 1113 do STF), a vigência da Lei Complementar nº 190/2022, que permitiu a cobrança do ICMS-Difal (Tema 1.266 do STF), da incidência do ISS sobre a cessão de direito do uso de marca (Tema 1.210 do STF), da incidência do ICMS sobre as tarifas Tust e Tusd (Tema 986 do STJ), dever de restituição do ICMS-ST e a aplicação do artigo 160 do CTN (Tema 1191 do STJ), e em muitos outros casos, devem repercutir na glosa das receitas arrecadadas sob tais fontes, ainda que não restituídas aos contribuintes.


Negligenciar essas irregularidades na arrecadação do ISS e ICMS, para fins de distribuição do IBS, seria incentivar comportamento arbitrário da própria administração pública, em completa contrariedade aos preceitos republicanos.


(2) A migração populacional entre municípios e a diminuição da receita pública per capita


O Censo de 2022 revelou uma forte migração populacional entre os municípios brasileiros, sendo que o número de habitantes aumentou em aproximadamente 56% dos municípios e diminuiu nos outros 44%[4] [5].


Municípios como Canaã dos Carajás (PA), Abadia de Goiás (GO), Extremoz (RN), Goianira (GO), Itapoá (SC), Querência (MT) e Barra Velha (SC) dobraram sua população em uma década [6]. Se ampliarmos para 20 anos o período de análise da evolução demográfica, veremos que aproximadamente 50 municípios viram seu número de habitantes dobrar [7].

Isso nos permite projetar que durante o período de 2034 a 2053, enquanto a maior parte da receita do IBS destinada aos entes municipais estará atrelada à fração obtida a partir da atual receita média do ISS e da quota do ICMS, e seu crescimento atrelado à evolução da arrecadação nacional desse novo imposto, a despesa pública poderá ser pressionada a crescer sobre outro patamar.


A situação pode ser encarada também sob a perspectiva da receita pública per capita, que deve diminuir significativamente para os municípios que tenham esse incremento populacional muito superior à média nacional.


À mercê de estudos técnicos nesse sentido, vale imaginar que um município com 20 mil habitantes e receita média de ISS e quota de ICMS equivalente a R$ 30 milhões, ao dobrar sua população em dez anos, precisaria aumentar sua receita na mesma medida para manter a proporção de R$ 1.500 de receita por habitante, o que muito provavelmente não ocorrerá.

Veja: a maior parte da receita do IBS do município, por ser distribuída a partir de uma fração estagnada (renda média do ISS e quota do ICMS) dos valores arrecadados por todos estados e municípios a título de IBS, vai acompanhar a evolução dessa arrecadação nacional, que tende a ser bem menor, seja porque a população do país não vai duplicar em 10 anos, seja porque nenhum estudo projeta um aumento de 100% do consumo no mesmo período.


Evidente que o ‘engessamento’ pela regra de transição do crescimento das receitas públicas dos municípios, ao prejudicar a dinâmica da relação receita-despesa, [8] pode provocar um profundo desequilíbrio orçamentário nestes entes.


O propósito da EC nº 132/2023 de se preservar por um longo período o cenário atual das receitas públicas, como ferramenta de proteção do pacto federativo, colocou de lado uma outra ameaça a esse mesmo pacto: o desequilíbrio vertical entre atribuição de responsabilidades pelos gastos e atribuição de receitas.


Vale a advertência de Sergio Prado sobre a dinâmica das contas públicas, ao afirmar que esse equilíbrio, “exige constante revisão e acompanhamento, pois no curto espaço de uma década podem ocorrer mudanças nas estruturas dos encargos e competências tributárias, tornando desequilibrada a distribuição vertical” [9].


Não se pode, é verdade, dizer que a regra de transição tenha deixado de projetar certo dinamismo às receitas municipais do IBS, na medida que a redução da parcela da receita distribuída sob os patamares do ISS e quota do ICMS (fração estagnada) será reduzida na proporção de 1/45 avos por ano.


O problema, nos parece, está na ausência de previsão quanto ao uso da parcela destinada ao seguro-garantia (artigo 132 do ADCT) para reequilíbrio orçamentário dos entes que experimentem uma dinâmica de pressão nas despesas públicas, como a decorrente do aumento populacional, muito mais acelerada do que aquela fração anual de 1/45 avos.

Infelizmente, o legislador complementar está impotente ante esse desafio, porque não pode superá-lo sem capitular àqueloutro do item (1), na medida que o equilíbrio vertical das despesas e receitas dos municípios como forte incremento populacional, depende da elaboração de um novo critério de distribuição das receitas do IBS, que somente pode ocorrer no patamar constitucional.

 

Fonte: Conjur

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