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  • Foto do escritorFabrizio Caldeira

Reconhecimento contábil e tributação de ativos fiscais

Em 2017, o JOTA lançou uma série sobre Direito Tributário e Contabilidade, que se tornou uma coluna com publicações até 2019. Dando continuidade às abordagens sobre os pontos de intersecção entre essas duas disciplinas, concebemos uma nova série de quatro artigos, que serão publicados quinzenalmente, enfrentando temas atuais que movimentam algumas discussões tributárias.


A incidência do IRPJ sobre os ganhos decorrentes de decisões judiciais em matéria tributária transitadas em julgado


No artigo de retomada da série, trataremos do momento da contabilização e dos reflexos tributários dos ganhos obtidos em decisões judiciais transitadas em julgado em matéria tributária.


Os efeitos da classificação contábil na definição do regime tributário


O segundo artigo abordará a classificação contábil como parâmetro para a definição do regime tributário aplicável à alienação de participações societárias e de imóveis detidos por holdings imobiliárias. A questão consiste em saber se os critérios de contabilização de um ativo (circulante ou não) são determinantes para a definição do regime de tributação.


O conceito de receita bruta


No terceiro artigo, o Direito e a Contabilidade comparecem como elementos interpretativos que auxiliam na redução das ambiguidades e vaguezas do conceito de receita bruta, constante do artigo 12 do DL n. 1.598/77.


Tendências para a definição do novo Lucro Real


Para encerrar a série, serão apresentadas algumas percepções tomando por base o fato de que (i) a contabilidade é o ponto de partida para a apuração do Imposto sobre a Renda; (ii) conforme anunciado, o Governo Federal deve apresentar sua proposta de reforma para a tributação da renda; e (iii) em 2019, foi ensaiado um projeto de “nova visão para o IRPJ com base no Lucro Real”, que dissocia a contabilidade da apuração do tributo. Nesse artigo analisaremos essa ideia.


Passando à questão de fundo desse primeiro texto, percebe-se que o tema gera tensão entre a Receita Federal e os contribuintes e, ao que tudo indica, deve se acentuar com o julgamento dos Embargos de Declaração opostos nos autos do Recurso Extraordinário n. 574.706 – que trata da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS. A decisão conduzirá ao término de milhares de processos que aguardam um posicionamento judicial.


O momento em que a disponibilidade dos ganhos se materializa é determinante para a tributação. Nesse aspecto, o Direito Tributário e a Contabilidade possuem parâmetros distintos para reconhecer a realização do ganho.


Sobre esse ponto, existem duas questões fundamentais para compreender o momento da contabilização e os reflexos tributários decorrentes do acréscimo patrimonial experimentado por decisões judiciais transitadas em julgado. O primeiro, consistente em saber quais são os critérios contábeis de reconhecimento e mensuração de ativos tributários decorrentes destas decisões. O segundo é relativo ao conteúdo do artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN) e à noção de disponibilidade para fins da incidência do IRPJ/CSLL.


Pela lente contábil, o ganho decorrente da ação judicial assume a feição de um ativo, que é definido como “recurso econômico presente controlado pela entidade como resultado de eventos passados”, e recurso econômico, por sua vez, é “um direito que tem o potencial de produzir benefícios econômicos” (§4.3 e 4.4 do CPC n. 00). Já o ativo contingente comparece como um ativo “possível”, mas que somente será confirmado pela existência de eventos futuros que não estão totalmente sob o controle da entidade (§10, CPC n. 25). O timbre de contingente obsta o reconhecimento porque é possível que esse ativo não se concretize no futuro (§33, CPC n. 25), o que traduziria uma informação não confiável aos usuários das demonstrações financeiras.


Enquanto a ciência contábil possui uma predileção pelo reconhecimento contábil de ativos tributários “praticamente certos” e mensuráveis, a despeito da efetiva realização financeira[1], a tributação pressupõe a disponibilidade do ativo.


Nessa interlocução entre as disciplinas, a legislação prevê uma ordem de expedientes a ser seguida para a composição da base de cálculo dos tributos incidentes sobre a renda. Uma das diretrizes é de que o lucro real é o lucro líquido do exercício ajustado nos termos da legislação tributária, sendo que esse lucro líquido deverá “ser determinado com observância aos preceitos da lei comercial” (artigo 6º, DL n. 1.598/77) e conforme a Lei n. 12.973/14 (artigo 1º).


Uma leitura apressada desses dispositivos pode conduzir à interpretação de que a legislação incorporou as normas contábeis e que o reconhecimento de ativos “praticamente certos”, mapeados pela contabilidade, estão gabaritados para produzir efeitos tributários.


Nesse cenário, teríamos uma subordinação ao CPC n. 25, vocacionado às provisões e aos ativos e passivos contingentes, vigente à época da edição da Lei n. 12.973/14, que culminaria na ideia de que, uma vez reconhecido contabilmente o ativo tributário, tais valores deveriam ser oferecidos à tributação.


A despeito de a legislação emprestar à Contabilidade a função de informar o acréscimo patrimonial experimentado pela entidade, o fato gerador do tributo é a situação definida em lei como necessária e suficiente a sua ocorrência (artigo 114, CTN). E aqui a Contabilidade e o Direito Tributário se distanciam. Enquanto a ciência contábil impõe que uma riqueza “praticamente certa” seja reconhecida, a tributação da renda pressupõe a efetiva “aquisição da disponibilidade jurídica ou econômica” (artigo 43, CTN), o que impõe que a renda tenha sido juridicamente realizada para a produção de efeitos tributários.


Nessa ordem de ideias, adquire foro de relevância saber no que consiste a realização da renda e como essa ideia se aplica aos possíveis itinerários de reconhecimento de um ativo tributário. Entre as muitas interpretações possíveis, encontra-se na jurisprudência o entendimento de que a inscrição em precatório é suficiente para autorizar a tributação, porquanto é ele “um documento que veicula um direito de crédito líquido, certo e exigível proveniente de uma decisão judicial transitada em julgado”, que traduz “um direito cuja aquisição da disponibilidade econômica e jurídica já se operou”[2]. Tal entendimento é pautado pelo raciocínio de que o precatório traduz um direito efetivamente disponível, mensurável e que pode, inclusive, ser cedido pelo beneficiário do crédito.


No que tange à compensação, antigos pronunciamentos da Administração Fazendária exploram a temática a partir da premissa de que o direito à compensação é potestativo, ou seja, “é exercido pelo seu titular sem a necessidade de colaboração do devedor” (Solução de Divergência COSIT n. 19/2003). Nesse pronunciamento ficou definido que, pelo regime de competência, o indébito deve ser levado à tributação quando o valor a recuperar seja certo ou, nas sentenças ilíquidas, com o término dos embargos à execução ou na data da expedição do precatório.


Trata-se de uma interpretação que fecha os olhos para o próprio itinerário administrativo necessário à satisfação desses créditos[3], que prescreve a obrigatoriedade de habilitação – que não é constitutiva, mas declaratória – e não deixa de ser um óbice à disponibilidade do ganho obtido, indo de encontro à noção de realização da renda.


Afora as muitas lições e os possíveis ângulos que a ideia de realização e de disponibilidade fomenta, a inclusão dos valores obtidos com ações judiciais transitadas em julgado na base de cálculo do IRPJ/CSLL deve operar-se no momento da efetiva realização do direito, via compensação ou restituição. Tal como já decidido no âmbito do CARF, notadamente num precedente conduzido pelo então Conselheiro Relator José Antônio Minatel, a noção de realização alça a “troca” como característica marcante para que o ganho possa produzir efeitos tributários[4]. Por mais que o trânsito em julgado de uma decisão traduza um ganho que, regra geral, não mais se discute, antes da realização o que existe é nada mais do que uma potencialidade, sendo, inclusive, passível de questionamento pelo credor.


Assim, afora a questionável tributação da renda sobre a atualização dos valores via SELIC (Tema 926 STF), quando se tratar de um ganho apto a integrar a base de cálculo do IRPJ/CSLL – nas balizas do artigo 595, §9º, do RIR 2018 –, o que autoriza a incidência é a disponibilidade jurídica ou econômica do ativo. Como temperamento a tais considerações, vale lembrar que as obrigações são formadas por um credor e um devedor. Nesse aspecto, o crédito (direito) da entidade não pode se distanciar do débito (dever). É dizer ser incoerente que a receita do credor seja reconhecida se o devedor ainda não incorreu em custo ou despesa, razão pela qual o acréscimo patrimonial experimentado com a decisão judicial só pode ser reconhecido, para fins fiscais, “à medida que se tornam despesas incorridas para o Poder Público”, como também já se manifestou o CARF (Acórdão n. 1402-001/705).


Entendimento contrário, note-se, desvirtuaria o paradigma de relacionamento entre o fisco e o contribuinte, alcançaria potencialidades e gravaria um fato econômico que não revela capacidade contributiva. Extrai-se de tudo isso que as informações evidenciadas nas demonstrações contábeis não podem ser transportadas para a tributação de forma acrítica.


A visão prospectiva da Ciência Contábil, que congrega passado, presente e futuro, revela uma perspectiva dinâmica. A incidência tributária, porém, ocorre num átimo específico e só pode alcançar o acréscimo patrimonial definitivamente acoplado ao patrimônio, sem reservas ou condicionantes. Tudo, é importante reforçar, em alinhamento com o conceito de patrimônio – núcleo da tributação da renda –, que só pode ser o jurídico.


A despeito do reconhecimento do ativo pela Contabilidade, para fins tributários, a disponibilidade, seja econômica, seja jurídica, só se manifesta quando a renda está – o pleonasmo é proposital – disponível para o sujeito ativo da ação judicial transitada em julgado.


Fonte: JOTA 12.10.2020

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