A Receita Federal não poderá mais, de forma automática, apenas com a verificação de dívida em aberto, encaminhar ao Ministério Público pedido de investigação de sócio ou administrador de empresa por crime tributário. Portaria publicada pelo órgão passou a exigir para essa comunicação – chamada de representação para fins penais – a comprovação de fatos que indiquem a ocorrência de um crime.
A partir de uma representação, o Ministério Público avalia se abre um inquérito. É a primeira etapa. Quando instaurado, o sócio ou o administrador corre o risco de ser denunciado e ter que responder como réu em uma ação penal.
Até então, a Receita Federal vinha enviando esses pedidos ao Ministério Público apenas com a verificação, nos sistemas do órgão, de dívidas em aberto, com base no artigo 6º da Portaria nº 1.750, de 2018. Eram casos de contribuintes que devem tributos com retenção na fonte, como Imposto de Renda e contribuição previdenciária, que poderiam responder por crime de apropriação indébita.
A alteração veio com a Portaria nº 199, publicada na sexta-feira, e que entrará em vigor no dia 1º de agosto. O texto muda o artigo 6º e passa a exigir que seja devidamente comprovada “a ocorrência dos fatos que configuram, em tese, os crimes previstos no artigo 2º [contra a ordem tributária ou contra a Previdência Social ou contrabando e descaminho] e que afastem a alegação de mero erro na transmissão das informações à base de dados da Receita Federal do Brasil”.
De acordo com advogados, o cruzamento de dados não seria suficiente para uma representação, pois pode haver um erro em uma declaração – já que não são cobranças derivadas de fiscalizações realizadas por auditores fiscais. O recebimento do informe da representação fiscal, acrescentam, é o suficiente para alertar empresários, que acabam forçando as empresas a pagarem o tributo que não seria devido.
A previsão da portaria de 2018 passou a ser mais utilizada no fim de 2021. Diretores de empresas começaram a receber avisos da Receita Federal de que poderiam ser responsabilizados por crime caso não fossem quitadas dívidas em aberto. O órgão informava que poderia inscrever o contribuinte na dívida ativa e encaminhar representação fiscal para fins penais ao Ministério Público. Tributaristas já alertavam, porém, que a jurisprudência autoriza a medida somente depois de esgotado o processo administrativo.
“Os diretores começaram a receber do nada as representações por causa de débitos em aberto”, afirma Cassio Sztokfisz, que considera a mudança positiva. “Nitidamente é um aperfeiçoamento da legislação por parte da Receita Federal.”
O advogado destaca que eram comuns representações referentes a débitos de Imposto de Renda e de contribuição previdenciária. “Ao invés de a Receita Federal perguntar o que aconteceu, ela enviava a intimação para o diretor com prazo para pagar sob risco de enviar a representação para o Ministério Público”, diz. Em muitos casos, acrescenta, eram erros ou não pagamento por discussão judicial com liminar.
Para o advogado, a mudança de entendimento deve ter considerado os recursos apresentados pelos contribuintes nessas representações fiscais. Também é essa a estimativa de Mauro Silva, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco Nacional). “Acredito que para chegar a esse ponto muitas representações estavam sendo consideradas como improcedentes”, afirma.
Silva destaca que a portaria trata de um tipo de representação feita quando não há fiscalização por parte da Receita, apenas embasada nos dados declarados ao Fisco. “Agora isso não poderá ser feito se não for comprovada a ocorrência dos fatos.”
A Receita, segundo ele, vai poder representar ao Ministério Público com base em dados internos, mas não de forma automática. “Será necessária uma apuração com a comprovação do crime. Vejo como cuidado por parte da Receita”, diz. A ideia, afirma, é tratar o bom contribuinte com a compreensão necessária e o mau contribuinte com o rigor da lei.
De acordo com o advogado Renato Dilly Campos, a Receita precisaria ouvir as partes ou comprovar dolo (consciência e vontade do empresário no caso). Outra possibilidade seria considerar a reiteração do crime tributário.
Para Campos, depois que o Supremo Tribunal Federal decidiu que declarar ICMS e não pagar configura crime de apropriação indébita tributária, as autoridades expandiram o entendimento e banalizaram muito a possibilidade de penalização do empresário. “Há casos em que o contribuinte se equivoca na declaração. Existem muitas obrigações acessórias, deveres do contribuinte que exigem grau de conhecimento técnico”, afirma.
Procurada pelo Valor, a Receita Federal informou que não está concedendo entrevistas sobre o assunto.
Por Beatriz Olivon
Fonte: Valor Econômico
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