Na coluna de hoje, trataremos sobre o tema dos juros sobre capital próprio (JCP), essa figura jurídica tipicamente brasileira – como dizem das coisas que só são vistas por aqui, uma “jabuticaba” -, criada pela Lei nº 9.249/95, em seu art. 9º[1].
A sua criação possuiu diversos objetivos -razão pela qual os JCP sempre foram objeto de análises multifacetadas- que podem ser resumidas em quatro: a) tornar neutra a escolha dos acionistas quanto a capitalização das sociedades através de capital próprio (“equity“) ou por capital de terceiros (“debt“); b) incentivar a capitalização e redução do endividamento das sociedades; c) promover uma integração entre a tributação da renda entre pessoas físicas e jurídicas; e d) reduzir os efeitos da extinção da correção monetária das demonstrações financeiras, extinta pelo art. 4º da Lei nº 9.249/95, como forma de combater a inflação no país[2].
Como não poderia deixar de ser, dada a sua peculiaridade, o pagamento dos JCP envolve também uma série de controvérsias no âmbito do Carf, desde a sua natureza jurídica, se juros ou dividendos, mormente para fins de aplicação de acordos de bitributação, seus limites quantitativos de sua dedutibilidade, até mesmo ultrapassando o âmbito da 1ª Seção, quando se discute a incidência de PIS/Cofins sobre os valores recebidos a esse título.
Em razão de limitações de espaço, optamos por tratar de um tema que é reiteradamente discutido no Carf, e que entrou em evidência com a proposta de elaboração de súmula a seu respeito: a questão do limite temporal para a deliberação e dedutibilidade dos JCP pagos aos sócios ou acionistas.
Explicitando melhor, discute-se se é possível que a sociedade delibere posteriormente a distribuição dos JCP retroativos (que não foram pagos em exercícios anteriores) em exercício atual, ou se os limites para o pagamento de que trata o art. 9º, §1º, da Lei nº 9.249/95[3] devem se referir ao mesmo período, atendendo ao princípio da competência (ou seja, tanto os lucros como a variação da TJLP e os saldos das contas de PL devem se referir ao exercício em que foram pagos os JCP).
Em razão da enorme quantidade de acórdãos proferidos sobre a matéria, optamos por apresentar de forma sucessiva os argumentos favoráveis às duas posições.
Pois bem, o Acórdão nº 1302-002.098[4] consignou que a IN SRF nº 11/1996, em seu art. 29, estabelecia que os JCP devessem ser deduzidos na apuração do lucro real, observando-se o regime de competência, enquanto o art. 30, p.u., estabelecia que o seu registro se desse em contrapartida de despesas financeiras (em contrariedade ao disposto na Deliberação CVM nº 207/1996, que indicava que os JCP devessem ser excluídos do lucro líquido apenas na apuração do lucro real, como um ajuste exclusivamente fiscal).
Nessa mesma linha, os Acórdãos nº 1401-002.105[5] e 1402-003.899[6] frisam que, para efeitos de dedutibilidade, os JCP não podem exceder metade do lucro líquido correspondente ao período-base do pagamento ou crédito dos juros, ou metade dos saldos lucros acumulados e reservas de lucros, e que tal raciocínio decorre do art. 177 da Lei nº 6.404/76, que estabelece o regime de competência como critério básico para o registro das operações da pessoa jurídica. Desse modo, uma vez que a despesa de juros está relacionada à existência de lucros ou reservas em determinado período, a exigência do emparelhamento entre receitas e despesas impõe que os JCP sejam reconhecidos no exercício correspondente à deliberação do destino dos lucros, e não posteriormente.
Com ênfase no aspecto societário, aduziu-se no Acórdão nº 1101-000.904[7] que, caso não haja a contabilização dos juros no período-base correspondente à apuração do lucro – condição de sua dedutibilidade -, não haveria despesa incorrida.
Assim, a sua apropriação tardia, em exercício posterior, seria prova de uma distribuição de lucros acumulados, e não do pagamento de JCP – em outras palavras, em sendo a deliberação do pagamento de JCP uma faculdade da empresa, a ser exercida no momento da proposta de destinação do lucro líquido do exercício (art. 192 da Lei nº 6.404/76[8]), pode-se afirmar que ao não segregar o resultado do exercício daquilo que seria remuneração da utilização do capital dos sócios, estar-se-ia designando integralmente o lucro apurado como remuneração do capital, determinando o pagamento dos dividendos ou a manutenção do valor em reservas de lucros ou lucros acumulados, para posterior distribuição.
De forma complementar ao argumento aduzido acima, pontuou-se no Acórdão nº 1402-002.341[9] que a deliberação acerca da destinação dos lucros é um ato jurídico perfeito, de modo que alguma modificação – que seria necessária para a dedução de JCP retroativo – exigiria que se comprovasse algum vício que justificasse a alteração do balanço, e não simplesmente ignorar o que fora deliberado.
Sob o ponto de vista contábil, o mesmo acórdão invocou a Solução de Consulta Cosit nº 329/2014, onde se afirma que, na distribuição de dividendos, esse valor integra o saldo de contas do patrimônio líquido, de modo que o seu pagamento não afeta o resultado do exercício, independente do período em que eles sejam entregues. Por outro lado, o pagamento de valores de JCP tem natureza de despesa, razão pela qual transita pelo resultado do exercício de sua competência – trata-se, portanto, de valor estranho a qualquer área patrimonial em períodos posteriores.
A posição contrária, defendida e.g. no Acórdão nº 1302-002.098[10], se baseia no fato do art. 9º, §1º, da Lei nº 9.249/95 não ter estabelecido nenhuma limitação temporal acerca do pagamento dos JCP, não podendo a fiscalização fazê-lo, senão em virtude de lei. Da mesma forma, inexistiria previsão no sentido de que a ausência de deliberação dos JCP em exercícios anteriores implicaria a perda do direito à dedução desses valores do lucro real, por falta de fundamento jurídico para tanto.
Argumenta-se, também, que a inobservância do regime de competência não resultaria em postergação do tributo devido, mas na sua antecipação, haja vista que o contribuinte passa a deduzir em exercícios posteriores despesas financeiras que poderiam ter reduzido o lucro tributável em anos anteriores.
Além disso, invoca a definição de passivo, estabelecida pelos pronunciamentos contábeis, para afirmar que a obrigação de pagamento dos JCP só nasce com a deliberação dos sócios, e que, portanto, apenas no exercício que se der a deliberação é que deverá ser o período de competência para o reconhecimento da despesa.
Em outra linha argumentativa, o erudito voto vencido no Acórdão CSRF nº 9101-002.797[11] pontua que os JCP não são uma espécie de despesa, mas sim uma remuneração do capital próprio investido pelos sócios na pessoa jurídica, dedutível diretamente dos lucros desta e com regime próprio de apuração, não se sujeitando às regras contábeis gerais. Aduz também que os JCP pertenceriam ao exercício em que o seu pagamento ou creditamento ocorressem, adotando um regime de caixa para o seu reconhecimento – frise-se que esse entendimento foi adotado pelo STJ no julgamento do REsp nº 1.086.753/PR[12].
Analisando o extenso volume de precedentes, pode-se afirmar que há, no Carf e na CSRF, uma jurisprudência consolidada no sentido de que a dedutibilidade dos JCP está condicionada ao seu reconhecimento no período da competência, sendo vedada a dedução fiscal de JCP retroativo. Fora as decisões citadas acima e muitas outras que não foram reproduzidas, por envolverem os mesmos argumentos já reproduzidos, a 1ª CSRF julgou a matéria em diversas oportunidades, sempre no mesmo sentido: e.g. Acórdãos nº 9101-002.180, 9101-002.181, 9101-002.182, 9101-003.064, 9101-003.065, 9101-003.066, 9101-003.067, 9101-002.700, 9101-003.570 e, mais recentemente e com a atual composição daquele colegiado, 9101-004.253[13].
O único acórdão recente favorável ao contribuinte que localizamos foi o de nº 1401-003.275[14], que negou provimento ao Recurso de Ofício, onde ocorrem conflitos entre acionistas, com demandas judiciais e procedimentos arbitrais, que postergaram em vários anos a aprovação das demonstrações financeiras e, por conseguinte, a deliberação sobre o pagamento dos JCP. Trata-se, portanto, de um caso concreto excepcional, que não se aproxima dos demais tratados nos precedentes acima arrolados.
Como dissemos no início de nosso texto, esse tema foi objeto da 18ª Proposta de Enunciado de Súmula (“São indedutíveis juros sobre o capital próprio calculados sobre contas do patrimônio líquido de exercícios anteriores.”), veiculada pela Portaria CARF nº 29/2019, para julgamento em sessão da 1ª CSRF, que foi realizada no dia 03/09/2019. Na ocasião, a referida proposta de súmula foi rejeitada por não atingir o quórum de 3/5 do colegiado (art. 72, §2º do Ricarf).
Sem entrar no mérito acerca da correção de uma ou outra posição de mérito, até porque não é este o escopo desta coluna, é preciso ressaltar que a matéria se encontrava em plenas condições de ser sumulada, sobretudo pelo fato inequívoco dela ser objeto de decisões reiteradas e uniformes do Carf, como determina o art. 72 do Ricarf.
Não se pode confundir a deliberação do mérito, por meio da qual os conselheiros votam se a tese A ou a tese B está correta, com a deliberação acerca da edição de súmula, oportunidade na qual se decide se há decisões reiteradas e uniformes sobre a matéria ou não, pouco importando a concordância ou não com o teor das mesmas.
Ademais, o simples fato da existência de decisão isolada do Judiciário em determinado sentido não é impeditivo para que a matéria seja objeto de súmula, sobretudo quando o próprio Ricarf estabelece, em seu art. 74, §4º, que caso haja superveniência de decisão definitiva do STF ou do STJ, em sede de julgamento realizado nos termos dos arts. 1.036 a 1.041 do CPC/2015, que contrarie a súmula, esta deverá ser imediatamente revogada pela presidente do Carf.
Diante desse panorama jurisprudencial, perdeu-se valiosa oportunidade de pacificar a questão institucionalmente, seja para evitar esforços deliberativos desnecessários por parte dos conselheiros, seja para estimular que os contribuintes direcionem seus esforços diretamente para o Judiciário, onde a questão poderá receber tratamento distinto, aí sim, invocando a existência de precedente no âmbito do STJ.
Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas sim uma análise dos seus precedentes publicados no sítio virtual do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.
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[1] Art. 9º A pessoa jurídica poderá deduzir, para efeitos da apuração do lucro real, os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio, calculados sobre as contas do patrimônio líquido e limitados à variação, pro rata dia, da Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP.
[2] MARTINS, Ives Gandra da Silva; SOUZA, Fátima Fernandes Rodrigues de. “A figura dos juros sobre capital próprio e as contribuições sociais do PIS e da Cofins”. Revista Dialética de Direito Tributário nº 169. São Paulo: Dialética, 2009, p.73.
[3] § 1º O efetivo pagamento ou crédito dos juros fica condicionado à existência de lucros, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados e reservas de lucros, em montante igual ou superior ao valor de duas vezes os juros a serem pagos ou creditados.
[4] Redator Designado Cons. Alberto Pinto, julgado em 11/04/2017.
[5] Relatora Cons. Luciana Zanin, julgado em 17/10/2017.
[6] Relator Cons. Leonardo Pagano, julgado em 15/05/2019.
[7] Relatora Cons. Edeli Bessa, julgado em 12/06/2013.
[8] Art. 192. Juntamente com as demonstrações financeiras do exercício, os órgãos da administração da companhia apresentarão à assembléia-geral ordinária, observado o disposto nos artigos 193 a 203 e no estatuto, proposta sobre a destinação a ser dada ao lucro líquido do exercício.
[9] Relator Cons. Leonardo Couto, julgado em 05/11/2016.
[10] Voto vencido do Cons. Marcos Nepomuceno Feitosa.
[11] Voto vencido do Cons. Luís Flávio Neto, julgado em 09/05/2017.
[12] REsp 1086752/PR, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/02/2009, DJe 11/03/2009.
[13] Relatora Cons. Viviane Vidal Wagner, julgado em 09/07/2019.
[14] Relator Cons. Cláudio Camerano, julgado em 20/03/2019.
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AUTOR: Por Carlos Augusto Daniel Neto, advogado, consultor tributário, professor de Direito Tributário, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf.
Fonte: Revista Consultor Jurídico - 12.09.2019
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